quinta-feira, 1 de outubro de 2009

Essa mítica entidade que dá pelo nome próprio de Eleitorado

1. É sempre a mesma coisa, depois de eleições multiplicam-se os argumentos com base na invocação das decisões do eleitorado. Como, por exemplo, no apelo Compromisso à Esquerda: “ao rejeitar a maioria absoluta, o eleitorado apontou para a necessidade de entendimentos entre os partidos. Além disso, tendo em conta a maioria das esquerdas, podemos dizer também que o eleitorado aponta para que, prioritariamente, tais esforços de entendimento sejam feitos neste sentido”.

2. Neste notável exemplo estão contidas pelo menos três afirmações sobre as decisões dessa mítica entidade que dá pelo nome próprio de Eleitorado: (1) o eleitorado retirou a maioria absoluta ao PS; (2) o eleitorado quer que os partidos se entendam; (3) o eleitorado quer entendimentos à esquerda. Nenhuma das afirmações faz qualquer sentido.

3. O PS perdeu a maioria absoluta porque a soma dos eleitores que nele votaram foi menor em 2009 do que em 2005. O fim da maioria absoluta é o resultado final agregado de milhões de escolhas eleitorais individuais, não a decisão inicial de uma qualquer entidade colectiva. O resultado de escolhas de eleitores não a intenção do ”eleitorado”.

4. Da mesma forma, o facto de não haver maioria absoluta nada nos diz sobre o que pretende a maioria dos eleitores de cada partido (ou do conjunto dos partidos). A maior das fragmentações pode ser o resultado de uma balcanização sectária, como a maior das maiorias absolutas pode estar associada à preferência pela concertação; ou vice-versa. As preferências políticas dos eleitores têm que ser empiricamente conhecidas, não retoricamente simuladas com base em proclamações sobre as preferências do eleitorado.

5. Como o eleitorado não foi consultado sobre as preferências por entendimentos à esquerda, ao centro ou à direita, a última afirmação é também vazia de sentido. Dizer que há uma maioria de esquerda significa simplesmente dizer que os votos somados dos três partidos classificados como de esquerda representam mais de 50% dos votos validamente expressos nas últimas eleições. Não significa que os eleitores que fizeram as escolhas que culminaram nesse resultado prefiram maioritariamente, em termos globais ou por partido, uma convergência entre PS, BE e PCP; como não significa o contrário. Pura e simplesmente, não sabemos, sendo abusivo pretender o contrário.

6. Para concluir. É legítimo que os signatários do apelo Compromisso à Esquerda afirmem preferir um entendimento entre PS, BE e PCP. Mas é a sua preferência, não a preferência de um eleitorado que não existe enquanto entidade dotada de capacidade para ter e exprimir preferências ou para decidir sobre o que quer que seja. Ora, se queremos fundamentar as nossas preferências não nos podemos dispensar de argumentar sobre os benefícios que delas decorrem, coisa que os signatários dispensam em troca da invocação das preferências do Eleitorado.


Adenda
Ainda por cima o argumento da preferência do eleitorado sobre entendimentos à esquerda é totalmente arbitrário, mesmo que punhamos provisoriamente de parte a questão-chave acima discutida. Alguns dos subscritores do apelo referido questionaram publicamente no passado a “natureza” de esquerda do PS, preferindo classificá-lo uns ao centro, outros mesmo à direita. Ora, em função da qualificação do PS que retivermos, poderemos dizer que o eleitorado preferiu entendimentos à esquerda, ao centro ou à direita. Decidam-se, mas não é honesto ir mudando de classificação em função das variações da conjuntura política.