segunda-feira, 26 de outubro de 2009

A propósito da anarquista espanhola

1. No Ladrões de Bicicletas, pedido de empréstimo, Miguel Serras Pereira reage à imputação, a Augusto Santos Silva, da comparação de Manuela Ferreira Leite com a anarquista espanhola. Tendo em conta o texto da reacção, ou Miguel Serras Pereira não leu o que disse Augusto Santos Silva ou decidiu sacralizar o anarquismo.

2. Recorde-se a frase, citando-a: “Habituei-me a ver a posição da líder do PSD mas no BE ou no MRPP, que é a posição do anarquista espanhol que diz ‘se há um Governo, sou contra’”. Interpretar esta frase como uma crítica não a Manuela Ferreira Leite mas ao anarquismo (espanhol) só fazendo por ignorar o que é uma figura de retórica, possibilidade impensável num autor e tradutor com a competência de Miguel Serras Pereira.

3. Resta, por isso, a sacralização do anarquismo e a reivindicação da sua superioridade moral e política em relação a outras ideologias como, por exemplo, o comunismo. E essa é reivindicação que não aceito. O anarquismo partilha com o comunismo a bondade de alguns ideais gerais, como o da crítica da desigualdade, socioeconómica ou hierárquica. Mas partilha também com este quer equívocos fundamentais na crítica da modernidade, quer práticas políticas de combate violento totalmente inaceitáveis. Só faltava que os simpatizantes da ideia anarquista se sentissem dispensados da crítica (e da autocrítica) radical que se exigiu e exige, e bem, ao campo do comunismo.

4. Entre os equívocos do anarquismo está a denúncia do Estado como forma absolutamente negativa de organização social. Equívoco, porque os malefícios do Estado não podem ser avaliados por comparação com uma qualquer realidade idealizada, mas com os efeitos terrenos da sua inexistência ou diminuição empiricamente observáveis. A ausência ou fragilidade do Estado, hoje, geram sempre um domínio absoluto do mais forte sobre o mais fraco, figurativa e literalmente. E esse não é mundo que se recomende. Não admira, aliás, que deste equívoco resultem, mais frequentemente do que se pensa, significativas porosidades entre os campos do pensamento anarquista e do pensamento neoliberal, particularmente nos EUA.

5. Práticas de combate político violentas associadas a algumas correntes anarquistas e presentes, por exemplo, na Guerra Civil de Espanha, não só são de todo injustificáveis, como não são alheias ao equívoco acima referido. Entre o domínio absoluto do mais forte sobre o mais fraco enquanto consequência não intencional do anti-estatismo e o fascínio por esse domínio e pelas culturas de violência que lhes estão associadas, vai um passo já dado por muitos em muitos locais. Como vai no mesmo sentido, ainda que de modo mais mitigado, o fascínio pela ética e pela corporação militar que permitiu que um mesmo autor, no caso Robert A. Heinlein, fosse por uns classificado como fascista e por outros como libertário, dependendo do posicionamento do crítico no contínuo esquerda-direita do espectro democrático.

6. Dir-se-á que estes exemplos são derivas extremas de um pensamento essencialmente decente e bondoso. O mesmo disseram, durante anos, os marxistas sobre o socialismo real. Até se perceber que entre as derivas históricas e o núcleo do pensamento originário não havia apenas perversão mas também continuidade lógica. Compreensão que faz falta no campo do anarquismo e que a sua sacralização procura evitar. Nada que não seja conhecido por quem teve outros percursos.